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ROBERTO ROMANO

Notas para uma Filosofia do Segredo.



A democracia começa e termina com o segredo. [...] O segredo não pode ser atribuído apenas ao Estado e às suas instituições. [...] A sua prática passou das corporações aos setores administrativos, aperfeiçoando-se ao máximo. O segredo, enuncia Simmel, não pertence nem ao campo do ter nem ao do ser, mas ao do agir”.(1)
[...]

Seria inaceitável para um governante absolutista a soberania popular e a noção de que os dirigentes deviam prestar contas de seus atos, sem guardar segredo, à massa não qualificada. Todos os príncipes liam nos tratados políticos e na literatura grega ou romana a plena desconfiança no povo. [...] E arremata La Boétie (2): “O povo não tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita em outrem. Ora, é comum que a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela seja mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões que se enuncia”.
[...]

Passada a era das revoluções, para usar o termo de Eric Hobsbawn, e depois do pesadelo trazido pelos Estados totalitários do século 20, o poder estatal apresenta agudos problemas. Na dialética contraditória ocorrida na ordem democrática anterior aos totalitarismos —os demagogos prometeram plena transparência ao povo, mas precisaram assumir o segredo estatal, foram eleitos pelo voto secreto e, nos palácios, usaram o segredo para domar as massas que os sufragaram — o pêndulo foi da convulsão social e política às tiranias como a nazista. A resposta do poder ao segredo do voto foi o recrudescimento e a manipulação inaudita do segredo de Estado.
[...]

Com a Segunda Guerra, a Guerra Fria, o Macarthismo e as formas autoritárias que visualizamos no mundo, o segredo aumentou sua abrangência. Se os países socialistas, supostamente repúblicas populares, quebraram a base da accountability e da fé pública em proveito dos governos, algo similar ocorre hoje na Europa e nos EUA. Hannah Arendt afirma que a vida totalitária deve ser entendida como reunião de “sociedades secretas estabelecidas publicamente” (3). O paradoxo é só aparente. Hitler examinou os princípios das sociedades secretas como corretos modelos para a sua própria. Ele promulgou em maio de 1939 algumas regras do seu partido: primeira regra: ninguém que não tenha necessidade de ser informado deve receber informação. Segunda : ninguém deve saber mais do que o necessário. Terceira: ninguém deve saber algo antes do necessário. (4)

Consideremos a lição de Norberto Bobbio: “O governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente à urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (…) o poder oculto não transforma a democracia, a perverte. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina” (5).

A democracia moderna surge com a exigência de accountability a ser cobrada dos governos. A radicalidade dos democratas ingleses rendeu frutos na Europa e na América do Norte. Os seus postulados sustentaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Woodrow Wilson, insiste no elo entre fé pública e responsabilidade, o que deve atenuar o segredo de Estado (6). [...]

O segredo é essencial para se refletir sobre a forma democrática. Governos exasperam a prática de esconder os pontos maiores das políticas no setor público. Entramos no paradoxo: o público é definido fora do público. A opacidade estatal atinge níveis inéditos. [...]

Sendo fato social, o segredo se manifesta em todos os coletivos humanos, das igrejas às seitas, dos Estados aos partidos, dos advogados aos juízes, dos quartéis às guerrilhas, das corporações aos pequenos vendedores de rua, da imprensa à formas de censura, dos laboratórios e bibliotecas universitários à fábricas, dos bancos às obras de caridade. Se descermos mais fundo, da sociologia à ordem antropológica, podemos dizer que o segredo é o lado oposto e necessário da linguagem comunicacional.[...] A prudência define a passagem de uma prática ou experiência do segredo antropológica e eticamente correta, para uma outra, em que se manifesta o poder abusivo. A balança entre abertura e segredo foi indicada por Simmel : “a intenção de esconder assume intensidade tanto maior quanto se choca com a intenção de revelar” (7). O segredo integra a vida, como uma realidade não visível. Neste sentido, [...] o segredo vive na consciência dos homens que, ao se reunirem para qualquer fim, agem tendo em vista alvos não imediatamente perceptíveis pelos demais e, sobretudo, pelos alheios ao grupo.

O pensamento liberal é oposto ao segredo, salvo em situações de guerra. O ensaio de Bentham, Of Publicity, é o mais saliente nesse aspecto. A publicidade é “a lei mais apropriada para garantir a confiança pública, sendo a causa de seu avanço constante rumo ao fim de sua instituição”. O segredo, pensa Bentham, “é instrumento de conspiração; ele não deve, portanto, ser o sistema de um governo normal”. (8) Para citar novamente Simmel : “Toda democracia considera a publicidade como uma situação intrinsecamente desejável, seguindo a premissa fundamental de que todas as pessoas deveriam conhecer os eventos e circunstâncias que lhes interessam, visto que esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir nas decisões sobre elas mesmas” (9).
[...]

Tal forma de compreender é dogmática e dispensa todas as distinções entre a fala e os objetos. Ela é a verdade em andamento. A garrulice não dissimula, não se esconde em nenhum segredo, porque ela mesma já é dissimuladora. Quando um linguarudo fala, ele esconde sem saber ou desejar o que deveria ser dito, joga um véu de sons acima dos entes que deveriam ser pensados. Quando fala o tagarela, ele impede toda discussão posterior. “Tudo está dito”. E nada deve ser perguntado. Desaparece o segredo no mais banal, na opinião publica (10).


Notas

(1) Citado por Michel Senellart, «Simuler et dissimuler : l'art machiavélien d'être secret à la Renaissance», in: Histoire et secret à la Renaissance. Etudes sur la représentation de la vie publique, la mémoire et l'intimité dans l'Angleterre et l'Europe des XVIe et XVIIe siècles. (Paris, Ed. François Laroque, 1997), páginas 99-106.

(2) Cf.La Boétie, Etienne: Mémoires de nos troubles sur l´Édit de janvier 1562, p. 12.
(3) Hannah Arendt. “Il potere in maschera.” In L´Utopia capovolta. Torino, La Stampa, 1990.p. 62.

(4) Cf. Jos C.N. Raadschelders : “Woodrow Wilson on Public Office as a Public Trust” No endereço eletrônico: bush.tamu.edu/pubman/papers/2002/raadschelder.pdf

(5) Dean, John W.: “Worse than Watergate”, The New York Times, 02/05/04. “…a presiência Bush-Cheney é claramente nixoniana e apenas no que diz respeito ao segredo ela é pior (…). Dick Cheney, que dirige suas próprias operações governamentais secretas declara abertamente pretender que o relógio volte para antes de Watergate, tempo de uma presidência imperial, extra-constitucional e inconfiável (unaccountable). Declarar a sua presidência secreta como anti-democrática é pouco.(…)Woodrow Wilson, com base em seu longo estudo sobre a arte de governar, conclui o que todo mundo sabe, ou seja, que a corrupção vigora nos lugares secretos e foge dos públicos. Acreditamos justo o enunciado que afirma o secredo enquanto sinônimo de impropriedade”. Sejam quais forem os juízos sobre o autor, ele indica um ponto que merece atenção.

(6) The Theory Of Moral Sentiments (1759): Parte VII – “Of Systems Of Moral Philosophy”. Raphael and A.L. Macfie (Ed.), vol. I The Glasgow Edition of the Works and Correspondence of Adam Smith, V.I, (Indianapolis: Liberty Fund,1987)

(7) Georg Simmel, “The sociology of secrecy and of secret societies”, in American Journal of Sociology, V. 11, 4, janeiro 1906, página 337.

(8) Citado por David Vincent, "The Culture of Secrecy." Britain, 1832-1998, página 6. “A powerful and persistent culture of secrecy--reflecting the basic assumption that good government is closed government and the public should only be allowed to know what the government decides they should know--was carried over from the nineteenth century and refined in the twentieth century when it was given statutory backing through Britain's formidable secrecy laws.” C. Ponting: Secrecy in Britain (Londres, 1990), cit. por David Vincent, op. cit. página 10.

(9) Georg Simmel, “The sociology of secrecy and of secret societies”, in American Journal of Sociology, V. 11, 4, janeiro 1906.

(10)“Il potere in maschera.” In L´Utopia capovolta. Torino, La Stampa, 1990. Páginas 261 e seguintes.

As licões do grande Bobbio são sempre deslumbrantes:
“O governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente à urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa?

Nosso atual governo desenvolve suas atividades de forma "democrática" mas, não à vista e, sim, de forma soturna. Como os eleitores vão formar uma opinião livre se, na sua maioria, são analfabetos, ou semi-alfabetizados, ou, no mínimo, instrumentalizados, que os impede de pensar? E quanto à segunda pergunta de Bobbio, a razão é a distribuição farta de 'benesses', que os mantém amarrados.
E com os representantes(?) que temos, não há chance de mudanças.

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